Entrevista a Herculano Cachinho, coordenador do projeto PHOENIX
Herculano Cachinho é geógrafo, professor do IGOT-ULisboa e investigador do CEG. Divide a sua investigação por dois grandes domínios temáticos: a “geografia do comércio e do consumo em contexto urbano” e a “educação geográfica e as metodologias ativas de ensino-aprendizagem”. No âmbito do primeiro domínio, coordenou o projeto “PHOENIX – Regeneração Urbana Liderada pelo Comércio e as Novas Formas de Governança” (2018-2022), financiado pela FCT.
O projeto PHOENIX pretendeu avaliar o potencial das iniciativas de regeneração urbana lideradas pelo comércio, promovidas pelas novas formas de governança que se difundiram nas cidades europeias e combina a investigação estratégica e aplicada, mobilizando para o efeito um mix de métodos e técnicas qualitativas e quantitativas, e a análise de um conjunto de casos de estudo na Área Metropolitana de Lisboa, concebidos sob a forma de Urban Living Labs.
P1. Pode descrever brevemente os objetivos do projeto PHOENIX?
Em grandes linhas, o Projeto Phoenix pretende averiguar o potencial das novas formas de governança na regeneração das áreas comerciais tradicionais, que de alguns anos a esta parte se vêm debatendo com problemas de vitalidade. Nas últimas décadas, assistimos a uma descentralização generalizada do comércio para as áreas suburbanas, induzida, em grande parte, pela aposta nas novas formas de distribuição, como os centros comerciais de influência regional, os hipermercados e as grandes superfícies especializadas nos mais diversos itens, que inovam não só na oferta, mas também na facilidade com que os consumidores lhes podem aceder e, por vezes, ao nível das funções que desempenham, nas quais se destaca a dimensão lúdica e recreativa das práticas das compras e do abastecimento. Esta descentralização precipitou o centro das cidades e o comércio de bairro para o declínio, conduzindo os poderes públicos e outros atores relevantes da comunidade a desenvolverem políticas de governança capazes de mitigar os seus efeitos.
Nos países liderados por regimes neoliberais onde o Estado, a nível central, e os poderes públicos, a nível local, têm uma ação de regulação relativamente limitada, os comerciantes e prestadores de serviços de algumas cidades sentiram a necessidade de se envolverem em estruturas de gestão colaborativas, que lhes permitissem enfrentar melhor os desafios que assolavam os seus negócios, e que os poderes públicos manifestamente não combatiam, e eles próprios, cada um por si, também não conseguiam resolver. Estas estruturas de governança, que inicialmente se apelidaram de BIDs (Business Improvement Districts), têm evidenciado um elevado poder de regeneração das áreas comerciais. Por isso, não é de estranhar que do Canadá, onde nasceram, rapidamente passem para os EUA e logo a seguir para o Reino Unido, e hoje marquem presença em cidades de contextos geográficos e culturais muito distintos.
O projeto Phoenix tem, assim, como objetivo principal averiguar as condições económicas, culturais e políticas que necessitam de estar presentes nas cidades para que estas formas de governança sejam bem-sucedidas e, por extensão, se tais condições estão presentes na sociedade e nas cidades portuguesas, para que nelas se possa investir. Para desenvolver esta avaliação, o projeto alicerça-se, essencialmente, numa análise de benchmarking, conduzida em diferentes cidades do Reino Unido, e na análise etnográfica de um conjunto de experiências piloto da Grande Lisboa, desenvolvidas de acordo com a metodologia dos Urban Living Labs.
P2. Em que medida a pandemia influenciou, seja de forma positiva ou negativa, a investigação desenvolvida, visto o comércio ter sido bastante afetado durante os períodos de confinamento?
Dados os atributos destas formas de governança, nomeadamente, a mobilização ativa dos comerciantes e outros atores da comunidade local na conceção dos diagnósticos, das estratégias e das ações a empreender na gestão das áreas comerciais, a pandemia não poderia ter chegado em pior momento. Na realidade, esta só não inviabilizou a implementação do projeto devido à possibilidade de podermos candidatar as experiências-piloto à rubrica “Bairros Comerciais Digitais”, desenhada no quadro do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
A Pandemia COVID-19 teve um impacto profundamente negativo no desenvolvimento do projeto por duas razões principais. A primeira, por limitar o contacto face a face com os comerciantes das áreas onde pretendíamos implementar as experiências-piloto. Como tínhamos iniciado o trabalho de campo no preciso momento em que apenas os estabelecimentos orientados para a satisfação das necessidades básicas de abastecimento poderiam permanecer abertos, tal impossibilitou a auscultação dos comerciantes e que os mesmos pudessem participar na construção dos planos de ação. A segunda razão prende-se com o próprio modelo de gestão dos BIDs, que implica a comparticipação direta dos comerciantes no financiamento dos serviços que se pretendem oferecer nas áreas intervencionadas. Mergulhados numa crise sem precedentes, com os estabelecimentos encerrados, os comerciantes descapitalizados não tinham disponibilidade para assumir tais encargos financeiros.
O único ponto positivo da pandemia talvez seja mesmo o aparecimento dos Bairros Comerciais Digitais e a possibilidade de candidatar as experiências-piloto a financiamento de algumas atividades relacionadas com a digitalização. Como o investimento na digitalização se vem revelar um fator chave para a competitividade das empresas, sobretudo para os pequenos comerciantes, a pandemia pode a médio e longo prazo vir a revelar-se uma mais-valia na implementação destas formas de governança e gestão das áreas comerciais.
P3. Considera que existem condições em Portugal para implementar os Business Improvement District (BID)?
Esta questão é muito interessante e gostaríamos de, neste momento, já saber responder. No entanto, através da análise de benchmarking que realizámos em algumas cidades inglesas e escocesas, conhecemos já alguns fatores que parecem ditar o sucesso e o insucesso destas estruturas, mas em Portugal estamos ainda muito longe de saber se estas estão presentes nas cidades portuguesas.
No entanto, sobre esta matéria é importante dizer que o próprio conceito de BID tem evoluído e sofrido mudanças significativas na viagem realizada pelo mundo. Mesmo circunscrevendo-nos apenas ao espaço do Reino Unido, existem diferenças significativas no modelo seguido pelas cidades da Inglaterra e da Escócia, nomeadamente, na participação e no papel que os poderes públicos desempenham nas próprias estruturas de governança. Mas para além dos poderes públicos existem outros protagonistas muito importantes, como a existência de líderes locais envolvidos com a mudança da comunidade e o desenho de futuros desejáveis. Contudo para responder, com propriedade, a esta questão precisamos ainda de muito trabalho de campo, que verdadeiramente apenas iniciámos com a candidatura das experiências-piloto aos Bairros Comerciais Digitais.
P4. Pode explicar o conceito de “Bairros Figitais” e o seu potencial para a regeneração urbana?
Os Bairros Figitais podem ser definidos como unidades morfo-funcionais estruturantes da cidade, cuja existência e apropriação se desenrolam, simultaneamente, nas esferas física, material, e digital, por natureza intangível. Digamos que este qualificativo serve, simplesmente, para dar conta da evolução dos bairros tradicionais e os impactos que a digitalização e as tecnologias móveis (a internet, os smartphones, etc.) têm tido na referida evolução. Até há bem pouco tempo, a identidade dos bairros da cidade era determinada pelas características físicas, morfológicas e sociais. Os atributos físicos e materiais ditavam as representações que as comunidades de indivíduos tinham dos mesmos, incluindo o sentido de identificação e pertença. No leque de amenidades que mais influenciam a personalidade dos bairros tradicionais, o comércio desempenha quase sempre um papel de destaque. Todavia, nos anos mais recentes, o desenvolvimento da digitalização e, em particular, a difusão da internet e as tecnologias móveis, não só estão a revolucionar a forma como as pessoas interagem entre si e se conectam com a cidade, mas também a alterar as práticas quotidianas, nomeadamente ao nível das compras e do abastecimento, ameaçando, por exemplo, a sustentabilidade do comércio de bairro e o papel das lojas físicas.
Com o uso do termo figital pretendemos dar conta da necessidade de conceber as áreas comerciais simultaneamente no mundo físico e digital. Falando de bairros, a primeira ideia que nos assola o pensamento é naturalmente a proximidade, a vizinhança e o convívio que lhes está associado. No entanto, a digitalização revoluciona por completo a noção de distância e acessibilidade. No caso do comércio, a digitalização coloca o bairro no Mundo, liberta o comércio das amarras da distância física e acrescenta à proximidade uma componente afetiva. Por isso é tão importante que os comerciantes concebam o digital como uma prótese ou apêndice dos estabelecimentos físicos. Ao fazer a síntese dos mundos físico e digital, a figitalização além de melhorar a funcionalidade dos estabelecimentos e das áreas comerciais, a que os clientes tradicionais são sensíveis, amplia também a sua atratividade e acessibilidade junto de novos consumidores, geralmente mais jovens, sensíveis à dimensão lúdica, tecnológica e emocional dos ambientes de compras e de consumo.
O potencial da figitalização na regeneração urbana é imenso, tamanhas são as possibilidades da sua materialização, seja ao nível dos negócios, seja do espaço público. Para explorar todo o seu potencial, é fundamental que tal exploração se realize, simultaneamente, em relação às valências funcionais/utilitárias e experienciais/lúdicas. A primeira vertente, ligada ao investimento na infraestruturação digital e na formação dos recursos humanos, permite introduzir eficiência e racionalidade na gestão das empresas e dos estabelecimentos, bem como na qualidade dos serviços prestados aos clientes, com claros ganhos de produtividade. A segunda vertente, orientada para a relação com o consumidor, exige um investimento nos ambientes das lojas, nas estratégias de marketing e na oferta, que dos simples bens e serviços deverá evoluir para as experiências, mediadas pela tecnologia digital, mas não passíveis de replicação no mundo online. Os ganhos de competitividade das empresas, das lojas e das áreas comerciais, proporcionados pela figitalização, serão tanto maiores quanto mais diversificada for a oferta experiencial, esta intersecte a realidade física e virtual, e as experiências sejam capazes de conectar e implicar os indivíduos-consumidores, gerando neles a ideia que as mesmas apenas poderão ser vivenciadas localmente. Quando isso acontecer, não haverá dúvidas que a tecnologia digital transcendeu a simples utilidade e participa agora na criação de espaços comerciais que são verdadeiros destinos imersivos, capazes de serem consumidos à semelhança da oferta que disponibilizam.
P5. Pode contar-nos um pouco sobre a sua trajetória pessoal e o que o levou a escolher a Geografia como área de estudo e profissão?
As minhas raízes estão numa aldeia do Douro, Paredes da Beira, do concelho de São João da Pesqueira, onde vivi a minha infância e de onde saí apenas para poder continuar os meus estudos. Inicialmente a minha principal vocação era a pintura e a arquitetura e era esse ramo do conhecimento que pensava cultivar. No entanto, por conselho de meu professor de artes visuais, devido à instabilidade pela qual passava a Faculdade de Belas Artes logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, quando tive de decidir a área que pretendia seguir no ensino secundário, acabei por optar pelas ciências naturais. Digamos que a Geografia sempre me fascinou, principalmente a geografia física e em concreto a meteorologia e a climatologia, mas na realidade esta foi claramente uma segunda escolha, que apenas ganhou verdadeiro entusiasmo no último ano do ensino secundário, o Ano Propedêutico, pelo programa da disciplina, que curiosamente pouco tinha de geografia física.
P6. O que diria a um/a jovem que está a considerar seguir a área da Geografia ou Planeamento e Gestão do Território no ensino superior?
O que lhe posso dizer, é que a Geografia, se levada a sério, é uma ciência fascinante como poucas, pela forma como o seu conhecimento substantivo e processual permite capacitar as pessoas para conhecer, compreender e interpretar o mundo, nas suas componentes física e humana. Quando ligada à sua componente mais aplicada, nomeadamente o planeamento e a gestão do território, esta é uma área com forte potencial para poder intervir ativamente no território, do bairro onde se reside ao mundo como um todo, e através da ação consciente e responsável, poder fazer a diferença. Isto acontece porque a formação em geografia no ensino superior fornece aos estudantes o capital espacial que lhes permite pensar e compreender as desigualdades e as injustiças sociais que flagelam o mundo nas suas diferentes escalas, e ao mesmo tempo criam em nós a consciência e vontade de participar de forma ativa para combater tais injustiças.
Neste contexto, caro estudante, se tens curiosidade em compreender o mundo em que vives, saber como os recursos naturais e humanos se distribuem no planeta, porque existem tantas desigualdades na distribuição da riqueza e da pobreza, e pretendes engajar-te no combate de tais desigualdades e na construção de um mundo social e ambiental mais justo e solidário, a geografia é talvez o curso que te pode dar o conhecimento e as ferramentas para pores em prática essa tua aspiração.
P7. Na sua opinião, qual a contribuição da Geografia e do Ordenamento do Território para a compreensão do mundo atual?
Os contributos da Geografia e do Ordenamento do Território para a compreensão do mundo atual são por demais evidentes, porque estes se encontram verdadeiramente nas raízes da própria ciência geográfica. A preocupação maior da Geografia, em termos teóricos e práticos, sempre consistiu em compreender o mundo, na sua complexidade, perceber como este se organiza e os fatores que estão subjacentes a tal organização. Sem esta área do conhecimento as pessoas dificilmente podem dar sentido ao mundo em que vivem, compreender a diversidade de problemas ambientais, sociais, económicos e políticos que hoje cada vez mais são dotados de uma componente global. Este conhecimento associado ao pensamento multiescalar e à natureza do raciocínio espacial permite também perceber o quanto estes problemas se encontram conectados.
Na realidade, sem um bom conhecimento geográfico, dificilmente se conseguem desenhar políticas e estratégias de intervenção eficientes para combater os problemas, independentemente do lugar onde estes ocorram. Eu diria mesmo que a esmagadora maioria dos problemas que assolam o mundo só existem, seja pelo baixo capital espacial de que é dotada a generalidade das pessoas que efetivamente têm poder de ação, seja pela secundarização/pobreza do conhecimento geográfico presente nas políticas desenhadas para combater os problemas, seja ainda pela dificuldade de introduzir o espaço e o território na agenda das políticas económicas que verdadeiramente importam.