Entrevista a Nuno Marques da Costa, coordenador do projeto COMPRI_MOv
Nuno Marques da Costa é geógrafo, exercendo a sua atividade como professor associado do IGOT-ULisboa e investigador do Centro de Estudos Geográficos, nas áreas de SIG, transportes e planeamento regional.
É o coordenador do COMPRI_MOv – COnhecer Mais PaRa Intervir melhor no contexto da MObilidade, um projeto de implementação rápida para soluções inovadoras de resposta à pandemia de COVID-19, cujo objetivo é caracterizar a mobilidade das populações, atendendo à intensidade, motivação e padrão geográfico dos fluxos e, associando a estas dinâmicas dados epidemiológicos, avaliar o risco de propagação associado à mobilidade. Como resultado do projeto foi proposto um sistema de monitorização para apoio à decisão e um modelo de simulação da propagação com base na mobilidade.
P1. Professor Nuno, em março de 2020 a pandemia trouxe mudanças profundas para todos, à escala global. Em Portugal, a primeira e principal solução encontrada foi o recolhimento domiciliário. Posteriormente, temos assistido a diversas medidas, que envolvem condicionantes à mobilidade. Através da investigação desenvolvida no COMPRI_MOv foi possível confirmar a relevância da mobilidade das populações como um factor de propagação do SARS-CoV-2?
A importância da mobilidade mostrou, desde o início, ser um elemento determinante para a explicação da propagação do vírus SARS-CoV-2. Diferentes estudos que foram sendo publicados apontaram para esta relação. Por outro lado, trabalhos anteriores no âmbito de Geografia, como os de Maria Emília Arroz ou de Peter Gould, já tinham evidenciado essa relação.
No entanto, o objetivo deste projeto não era apenas o de confirmar a existência dessa relação, mas também o de a modelar e, a partir dos parâmetros do modelo, permitir, com os dados de mobilidade, prever os valores de infetados no futuro próximo. Assim, os resultados do projeto, para além de confirmarem a existência da relação entre a mobilidade e a propagação do SARS-CoV-2, permitiram verificar a relação estreita entre os comportamentos de mobilidade e os valores de novos casos de infeções, com um desfasamento de 14 dias, prevendo os valores de infetados para 14 dias. Ou seja com os dados de mobilidade de hoje, prever os valores de novas infeções 14 dias depois.
Este modelo, aplicado ao momento anterior à vacinação, permitiu prever esses valores com elevado grau de ajustamento, para níveis de desagregação espacial diferenciados, nomeadamente por concelho, de acordo com a disponibilização universal dos dados nos relatórios da Google – COVID-19: Relatórios de mobilidade da comunidade.
P2. Quais considera serem, futuramente, as implicações da COVID-19 nos padrões de mobilidade das populações, nomeadamente nas cidades, e as suas implicações para o planeamento urbano?
Apesar de a COVID-19 nos ter afetado a todos, a verdade é que afetou de forma muito diferenciada a população, tanto em termos etários, como de género, grupos socioprofissionais ou socioeconómicos. Também em relação à mobilidade isso foi particularmente evidente; temos ativos que puderam continuar a sua atividade em teletrabalho face a quem teve a necessidade de continuar a realizar as suas deslocações diárias; e dentro destes, encontramos os que pela sua maior capacidade económica puderam deixar de utilizar os modos de transporte público, reforçando a utilização de modos individuais.
Esta realidade foi particularmente evidente nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, onde ocorreu uma redução muito acentuada da utilização do transporte público, depois da evolução positiva que se verificou a partir da primavera de 2019 como resultado da aplicação do PART (Programa de Apoio à Redução Tarifária). Esta redução do uso de transporte público resultou não só a do confinamento, como também da transferência para a utilização do transporte individual, da utilização de transporte suportado em plataformas digitais e do recurso a modos ativos. Assim, a recuperação da utilização do transporte público constituirá um dos principais desafios das cidades no futuro mais próximo. Os ganhos obtidos com o PART em pouco mais de um ano dificilmente serão recuperados nos tempos mais próximos, sendo que a utilização do transporte individual, do recurso a plataformas digitais e a modos ativos deverão manter-se como dominantes no próximo futuro.
Por outro lado, a prestação de serviços à distância e o recurso ao comércio eletrónico terão impactes na mobilidade individual, embora possam não reduzir o consumo de transporte. Outra tendência que poderá afirmar-se, neste caso com benefícios diretos no consumo de transporte, será a vivência do espaço de proximidade, o bairro, tanto para o consumo de bens e de serviços, mas também para as atividades de lazer. Estas conclusões encontram-se suportadas nos resultados do inquérito à população que foi realizado no âmbito deste projeto.
P3. Em que medida os resultados desta investigação podem contribuir para a definição de políticas?
Este projeto tinha três eixos de investigação: perceber de que forma as características demográficas e socioeconómicas dos territórios se relacionavam com os distintos níveis de incidência da infeção pelo vírus SARS-CoV-2; a definição do modelo explicativo e preditivo suportado nos dados de mobilidade e; quais as alterações na mobilidade como resultado da pandemia.
Os resultados do primeiro eixo evidenciaram a existência de condições socioeconómicas diferenciadas em cada momento, mostrando que a propagação da pandemia não foi territorialmente uniforme nem apresentou a mesma intensidade ao longo do processo pandémico, revelando a necessidade de intervir de forma diferenciada no território e no tempo, como se verificou nas opções tomadas pela política pública. Em relação ao segundo eixo, mostrou que a mobilidade observada se relacionava com o volume de infeções, permitindo antever os valores para um futuro próximo, a duas semanas. Desta forma é possível não só prever os recursos necessários no curto prazo, mas também intervir no controlo da mobilidade.
Por último, os dados de mobilidade nas duas áreas metropolitanas e os resultados do inquérito realizado, dão-nos informação em relação às alterações dos padrões de mobilidade e dos novos hábitos quotidianos, o que permitirá intervir de forma mais adequada a estas alterações.
P4. Fale-nos um pouco da sua trajetória pessoal e o que o levou a escolher a Geografia como área de estudo e profissão?
A opção pelo curso de Geografia surgiu no final dos meus estudos liceais. Estava numa área de ciências de Engenharia e de Economia com Matemática, Físico-Química e Geografia. No entanto, durante o último ano, o bichinho da Geografia começou a ganhar força, muito também por influência do meu Pai, que foi na verdade o meu primeiro professor de Geografia, ao mostrar-me o Portugal que tão bem conhecia. Por isso, durante o ano propedêutico, que é hoje o 12º ano, inscrevi-me como aluno externo a Ciências Naturais para poder concorrer a Geografia.
No ano Propedêutico, assistindo às aulas pela televisão e lendo e relendo os textos de apoio à disciplina de Geografia, formei a minha decisão de concorrer ao curso de Geografia do Departamento de Geografia da Faculdade de Letras de Lisboa. Ao longo do primeiro ano, apesar das aulas estimulantes e desafiantes do Professor Jorge Gaspar e do meu estimado Professor Diogo de Abreu, confesso que vacilei e considerei abandonar o curso Geografia e candidatar-me a um outro curso.
No entanto, o convite que me foi feito para participar como tarefeiro nos projetos que se desenvolviam na EPRU, que era uma das linhas investigação do Centro de Estudos Geográficos, fizeram-me mudar completamente de ideias. A entrada naquela cave da Faculdade de Letras deslumbrou-me com o muito que se podia e fazia em Geografia. Recordo os primeiros trabalhos que desenvolvi no âmbito da Geografia Eleitoral e da primeira aplicação dos métodos de projeção de resultados eleitorais para a RTP em 1979, ano em que integrei a equipa liderada pelo Professor Jorge Gaspar. Estes estudos ligaram-me definitivamente à Geografia. O ambiente que se vivia, e que ainda se vive, no Centro de Estudos Geográficos, de partilha de conhecimento, de estímulo científico constante e de companheirismo, foi determinante para a minha formação científica e profissional.
P5. O que diria a um(a) jovem que está a considerar seguir a área da Geografia ou Planeamento e Gestão do Território no ensino superior?
A Geografia é uma ciência em que se cruzam diferentes disciplinas. A formação nas áreas da Geografia e do Planeamento e Gestão do Território, permite uma educação teórica e prática que constitui a melhor forma de perceber o Mundo e dar resposta aos grandes desafios que nos são colocados, como as alterações climáticas, as pandemias ou a construção de cidades e de territórios mais sustentáveis e com melhor bem-estar. Permite ainda conhecer o mundo rural, as dinâmicas populacionais, a importância da mobilidade e dos fluxos económicos.
Essa formação capacita geógrafos e planeadores do território para entenderem as dinâmicas e os fluxos e para intervirem de forma ativa na solução dos problemas de base territorial. Por outro lado, a visão interdisciplinar e uma formação onde é privilegiado o saber fazer, capacita os profissionais para o trabalho em equipa, o que constitui uma mais valia no mercado de trabalho.
P6. Na sua opinião, qual a contribuição da Geografia e do Planeamento e Ordenamento do Território para a compreensão do mundo atual?
O contributo da Geografia e do Planeamento e Ordenamento do Território é fundamental para se perceber o mundo. Na verdade, tudo o que ocorre à nossa volta desenvolve-se numa localização específica, com um posicionamento sobre a superfície terrestre, mas o que ocorre naquele ponto é o resultado de relações físicas, sociais e económicas, que configuram os territórios. Para os perceber há que recorrer a um conhecimento multidisciplinar para entender esses mesmos territórios.
Porém, talvez o principal contributo para o entendimento do mundo atual, que os geógrafos e planeadores do território podem trazer, é o de perceber o que Yves Lacoste nos dizia: a realidade mostra-se diferente de acordo com a escala de observação. A mudança de escala conduz-nos a diferentes níveis de análise e fazendo isso passamos a assumir uma abordagem multiescalar, o que nos capacita para responder aos desafios atuais que, por natureza, se desenvolvem a escalas distintas. A capacidade de entender e aplicar esta abordagem é talvez o maior contributo que podemos apontar para a compreensão do mundo atual.